XX Congresso da
Associação Junguiana do Brasil

Soma, Psique e Individuação

De 14 a 17 de Junho de 2012

O Problema Espiritual do Homem Moderno

 

CORPO E PSIQUE:-gerando um campo de intensidade          

Elisabeth Bauch Zimmermann – zimmandrade@terra.com.br 

 

Sinopse: Para Jung, o ser humano precisa ser compreendido à luz da história e de sua inserção social. A diferenciação da psique coletiva criou um estado de separação entre as duas naturezas: a física e a psíquica. Como fazer para recriar a relação de unidade existente antes da ruptura que a consciência emergencial produziu? Para entrar em contato com o inconsciente é necessário objetivar seus conteúdos ou reconhece-los no corpo, ou seja, validar a experiência do corpo como manifestação exterior da vida do espírito. É necessário fazer uso da visão imaginativa e da relação com o somático, um processo em que as imagens compõem um todo complementar, como se fosse um modo de pensar mais antigo e, ao mesmo tempo, um pensamento novo, integrativo, não analítico e que não é o pensamento das teorias, dos conceitos e das interpretações. Essa maneira de conceber o trabalho psíquico gera um campo de intensidade, uma energia criativa que impulsiona o indivíduo em sua jornada de individuação.

 

Abstract: For Jung the human being must be comprehended under the light of the history of his social insertion. The psychic differentiation of collective psyche has criated a state of separation of both natures: the physic and the psychic. How can we recreate the relation of unity existent before the rupture which was produced by the emergent consciousness? In order to get in touch with the unconscious it is needed to objectify its contents or recognize them in the body, that is, to validate the experience of the body as an exterior manifestation of spiritual life. We need to use the imaginative view and the relation with the somatic, a process in which the images compound a complementary whole, as it would be an old way of thinking, and at the same time, a new integrative way, non analytic, which is not the thought of the theories, of the concepts and the interpretations. This way of conceiving the psychic work gives origin to a field of intensity, a creative energy which impulses the individual in his journey of individuation.

 

 

O ser humano para Jung precisa ser compreendido à luz da história e de sua inserção social. Não somos de hoje, somos de um longo tempo atrás, diz ele em uma entrevista em 1959. Por outro lado, afirma que a consciência individual é “um segmento arbitrário da psique coletiva” (Jung1928, p. 145). Diferenciar-nos dela significou um longo caminho para o homem. O desenvolvimento da consciência individual se deu a partir da diferenciação da psique coletiva que abrange tanto uma consciência coletiva, como um inconsciente coletivo. A psique coletiva, relacionada aos arquétipos e aos instintos se mantém em sua intensa dinâmica como um pano de fundo em todos os nossos movimentos enquanto a consciência se relaciona com o processo da civilização e da cultura.

 Nos tempos em que a consciência coletiva domina surge o risco, como atualmente acontece em diversas culturas, da massificação e da perda do livre arbítrio. Por outro lado, se a consciência é inundada pelo inconsciente coletivo perdemos nosso ponto de vista consciente. O que pode ser concluído é que existe a real necessidade de uma diferenciação dos dois aspectos coletivos da psique, o que Jung denominou de um trabalho contra a natureza.

 Se a cultura se dá a partir de um esforço contra a natureza, a negação pura e simples da cultura ao invés de nos devolver a uma natureza íntegra forçosamente nos legará uma natureza mutilada, uma vez que é impossível reverter o processo histórico e retornar a uma origem além e aquém da história. Natureza e cultura encontram-se de tal modo amalgamadas na experiência humana que não são mais separáveis, nem descartáveis em nenhuma de suas polaridades. Para um encontro saudável com a natureza humana, é necessária uma recriação sociocultural do homem que concomitantemente recrie a relação com a natureza. (Freitas, MG, 1991, p.138).

Como fazer para recriar a relação de unidade existente antes da ruptura que a consciência emergencial produziu? Como se manter no processo de diferenciação sem perder o contato consigo mesmo, nem com a natureza de onde viemos? Os males de nossa época podem ser transformados se entrarmos em contato com os processos vivos em nós e percebermos sua reação, se permitirmos que uma atitude simbolizadora, que restabelece a correlação entre consciência e inconsciente coletivo, se manifeste.

Jung diz em seu texto O Problema Espiritual do Homem Moderno (1928) que a época moderna, que se tornou mais presente depois da primeira grande guerra mundial, em que foram usadas pela primeira vez armas venenosas e de grande poder destrutivo e se firmaram tratados de paz suspeitos, fez o homem sofrer um importante choque psicológico que lhe trouxe uma profunda incerteza, mas que também fortaleceu a procura pelo espírito interior, a fascinação pelo conhecimento da psique. Uma vez que os processos do inconsciente não são diretamente observáveis, a consciência individual mais e mais passou a incluir em seu trabalho de diferenciação a descoberta do corpo como busca de si mesmo, vivenciando-o como sujeito e não como objeto que realiza ações utilitárias. Para entrar em contato com o inconsciente foi necessário objetivar seus conteúdos ou reconhece-los no corpo, ou seja, validar a experiência do corpo como manifestação exterior da vida do espírito.

O movimento exterior de trabalhar o corpo, seja porque o consumismo reinante induz à preocupação com a saúde e o conforto, seja porque uma vontade de libertação se encaminhou para a prática de exercícios aeróbicos, pode ser visto como uma das tentativas de tentar superar a tensão do homem contemporâneo. Além disso, nas camadas sociais que possuem recursos para atender seus desejos, surgiu a tendência de querer dominar o próprio corpo, possivelmente como compensação para a grande impotência que sentimos diante dos fatos consternadores apresentados pela mídia em nosso cotidiano. No entanto, não é apenas descarregando energias e treinando músculos que se dissolve a pressão interior. Os sentimentos precisam achar sua expressão, e o impulso inconsciente, que faz aflorar determinados conteúdos na consciência, precisa ser integrado, o que supõe um trabalho psíquico que gera um campo de intensidade, energia criativa que impulsiona o indivíduo em sua jornada de individuação.  Apesar dos golpes que a humanidade vem sofrendo, ou justamente por isso, houve uma expansão do ideal de conhecimento da natureza humana, incluindo então o corpo como meio de conscientização. A realidade corporal passou a ter importância na intenção de superar a antiga divisão que existiu por séculos entre mente e matéria e ainda persiste em nossos dias. Jung diz a esse respeito: “Mas se podemos nos reconciliar com a verdade misteriosa de que o espírito é a vida do corpo visto de dentro e o corpo é a manifestação externa da vida do espírito – os dois sendo realmente um só – então podemos entender porque o esforço para transcender o atual nível de consciência através da aceitação do inconsciente deve dar ao corpo seu valor, e porque o conhecimento do corpo não pode aceitar uma filosofia que o nega em nome do espírito” (idem, par. 195). Afirma que a partir desta percepção, em que as dimensões do externo e do interno se equivalem, formou-se na psique do homem moderno um estado de tensão interna que causa apreensão e desperta defesas. Não poder mais colocar no corpo aquilo que deve ser temido e mesmo desprezado, e sim assumir que sua realidade nos diz respeito para que possamos nos sentir inteiros abre uma perspectiva inusitada para muitos. Jung nos conta que a psique não foi sempre encontrada no interior. Houve épocas, em civilizações antigas, em que ela era encontrada fora porque eram épocas sem psicologia. Enquanto existiu uma forma exterior, ideal ou religião, em que as esperanças e aspirações da alma puderam ser adequadamente expressas, a psique ficou voltada para o exterior, não havendo problemas psíquicos assim como não tendo relevância a relação com o inconsciente. (ibidem, par158). Mas depois veio a necessidade de ir adiante e prestar atenção em sua psique. O crescimento rápido do interesse, durante as últimas décadas, no mundo todo, pelo processo interior, pelos fenômenos psíquicos de modo geral – astrologia, espiritualismo, teosofia, parapsicologia, terapias de regressão, psicoterapias e análises individuais e de grupo – nos diz que o homem moderno procura dentro de si respostas que o mundo material, apesar de tão desenvolvido, não consegue lhe dar. A intensificação desta busca se assemelha à corrente do gnosticismo, que existiu predominantemente nos primeiros séculos após Cristo, mas que ainda se manifesta como atitude nos dias de hoje. Jung estudou esse movimento, assim como as diversas mitologias e os textos alquímicos para encontrar modelos que dessem uma base de sustentação à suas hipóteses sobre a estrutura e a dinâmica da psique humana.  Um dos aspectos que lhe chamou a atenção nos sistemas gnósticos é que, ao contrário do que ocorria na igreja cristã oficial, estes se baseavam nas manifestações do inconsciente e seus ensinamentos morais penetravam o lado escuro da vida. O lado escuro para o homem moderno significou voltar-se para a realidade do inconsciente e do corpo.

Desde a época das primeiras grandes viagens das descobertas, manifestou-se no homem uma tendência para projetar no exterior o bem a ser alcançado, transformando a natureza e os indivíduos em objetos a serem possuídos. Até hoje o desejo sem limites de intervir na vida e nos problemas de outros povos, com o objetivo de

obter poder e ganhos materiais ilícitos, não arrefeceu, só foi se tornando mais sofisticado. Possivelmente, para contrapor algo a essa paixão de tornar os homens presas de si mesmos, surgiram novas formas espirituais substituindo as religiões existentes, desgastadas pelo esvaziamento da fé, o que aconteceu principalmente durante a história da religiosidade do ocidente.

A falta de respeito entre os homens, mencionada acima, pode ser vista como o outro lado da falta de contato consigo mesmo, uma vez que Jung nos fala das regularidades encontradas por ele nos comportamentos e percepções dos homens de modo geral.

O rápido aumento da população mundial, os avanços tecnológicos, a busca do conforto após os sofrimentos das duas grandes guerras mundiais tiveram como reação, num primeiro momento, um voltar-se para o mundo exterior e para as conquistas que ele representava, e ainda representa, para uma grande maioria da humanidade. Porém o homem que despertou para a necessidade do cumprimento profundo e pessoal de um sentido em sua vida tornou-se estranho à massa que vive presa aos laços conservadores e do bem estar material. Ele chegou ao limiar do mundo e está diante do Nada do qual, numa visão otimista, poderá crescer o todo. (ibidem, par 150/151)

Nesse contexto se inscreve a importância do que Jung descreveu como objetivação dos conteúdos psíquicos inconscientes. Ele enfatizou a importância das abordagens criativas como a dança, o desenho, o Sandplay, a modelagem, a música para dar expressão às imagens interiores e possibilitar uma outra forma de diálogo com o inconsciente. Quando ele se aventurou, de maneira pioneira, em sua viagem interior e se deixou “cair no inconsciente”, encontrando paisagens internas profundas, dando forma a elas em construções, esculturas, pinturas e textos complexos, legitimou todo um trabalho de pesquisa e tratamento que viria a se desenvolver nas próximas décadas. O esforço para transcender o presente nível de consciência inclui a tendência em nossos dias de dar ao corpo e ao mundo físico o seu crédito e livrá-lo de uma sujeição unilateral ao espírito.

Um dos aspectos mais significativos da percepção de Jung de que mente e corpo, (mundo psíquico e mundo físico) não são realidades separadas, se refere ao conceito desenvolvido por ele da sincronicidade, isto é, da existência de uma relação significativa entre dois eventos, físicos e psíquicos, sem aparente conexão causal, fazendo surgir uma coincidência significativa. Numa das primeiras definições dos fenômenos sincronísticos Jung os descreve como coisas que acontecem ao mesmo tempo como uma expressão do mesmo conteúdo (Jung, 1984) Nesta época, Jung fez o seguinte comentário baseado na teoria da relatividade de Einstein: mas se espaço e tempo são apenas aparentementente propriedades dos corpos em movimento e são criados pelas necessidades intelectuais do observador, então sua relativização a partir das condições psíquicas não é mais uma questão que nos deva surpreender e sim mostrar-nos que ela foi trazida para dentro dos limites da possibilidade. (Jung in Cambray, 2009, p.16).

Existem inúmeros exemplos de fenômenos sincronísticos: podemos citar, como tendo um grande potencial de desenvolvimento, tanto na pesquisa, como na clínica o campo da medicina psicossomática que observou a relação entre doenças orgânicas e imagens simbólicas que emergem espontaneamente antes e durante o tratamento. Seria a ocorrência simultânea de dois fenômenos diferentes em sua natureza, abrigando um mesmo sentido.

Em seus seminários sobre Nietsche, Jung diz: Somos dotados de uma conexão consciente-inconsciente que leva, de um lado, a um domínio puramente psíquico ou espiritual e, de outro, ao corpo e à matéria. Quando nos dirigimos para o domínio do espírito, o inconsciente torna-se inconsciente psíquico e, quando nos dirigimos para o corpo e para a matéria, ele se torna inconsciente somático (Jung in Schwartz-Salant, 1988).       

Para nos aproximarmos de um entendimento desses fenômenos pode ser de ajuda ouvir o que Cambray refere: os arquétipos do inconsciente coletivo certamente são marcas essenciais no modelo junguiano da psique. Formas virtuais, vazias em si mesmas, elas são concebidas como estruturantes de toda a vida psíquica; quando consteladas, através da combinação entre o ambiente e dados psíquicos, elas tendem a se manifestar em um imaginário arquetípico. Os arquétipos são entidades psicossomáticas ligando o corpo e a mente. Vistas em conjunto, formam uma rede policêntrica intensamente interconectada. (Cambray, 2009).

Então, o que parece ser fundamental nessa formulação da equivalência de corpo e espírito é reconhecer a dimensão arquetípica dessa relação. Ao estudar os textos dos alquimistas Jung concluiu que, a partir dos experimentos com substâncias físicas, se afirmava a necessidade de consolidar uma percepção deste processo num nível psíquico antes que a dimensão somática pudesse ser alcançada e transformada. Esta observação exclui uma concepção muito literal e concreta do corpo e da matéria em Jung.

Se a consolidação da experiência psíquica, por um lado, é um pressuposto para que suas descobertas possam ser atualizadas na realidade física, por outro, Schwarz-Salant nos diz que: O inconsciente somático representa o inconsciente, tal como o percebe o corpo… e essa é a única forma pela qual o inconsciente pode ser experimentado. (1988, p.162)

O que parece ser a grande contribuição de Jung para os nossos tempos, no que se refere à relação entre corpo e psique, é que ele nos ensina a lidar com a complementaridade inerente a ela. As informações que obtemos do inconsciente somático são reveladas através da imaginação, de um processo ligado ao sentimento e à sensação – uma sensação em grande parte introvertida – em que se apresenta uma configuração que quer se completar expressivamente. No meu trabalho como analista e pedagoga de dança notei, a partir de mim mesma, que o movimento espontâneo, relacionado com uma camada mais profunda da personalidade fazia surgir sempre novos impulsos, que desenvolviam a improvisação como um fio condutor. Era como se uma Gestalt interna estivesse presente, a qual, num determinado momento, era cumprida e deixava uma sensação de realização. Esse processo em que as imagens compõem um todo complementar é como se fosse um modo de pensar mais antigo e, ao mesmo tempo, um pensamento novo, integrativo, não analítico e que não é o pensamento das teorias, dos conceitos e das interpretações. Quando estamos num extremo, não podemos estar no outro, mas podemos depois reconhecer as suas equivalências e refletir sobre eles e sobre o ensinamento que deles recebemos. Parece que não é mais possível trabalhar a complexidade da realidade psíquica do homem atual a partir de um só método. Se não fizermos uso da visão imaginativa e da relação com o somático e ficarmos, em vez disso, dependendo exclusivamente do conhecimento da razão, poderemos ficar expostos a dissociações doentias, a sintomas psicossomáticos, a fobias e depressões. Trata-se de uma visão mais lunar do que solar, uma visão que se fundamenta na imaginação, que “é real”… e experimentada no próprio corpo. Ela corresponde à distinção feita pelos alquimistas entre a imaginação “verdadeira” e a imaginação “fantástica” (distinção feita por Jung em Psicologia e Alquimia, par. 369)… Na alquimia, imaginatio, ou ação de imaginar, configurava-se como uma das principais chaves da complementação bem sucedia da opus. Era um processo “semi-espiritual”, “semifísico” (in Jung, Psicologia e Alquimia, par. 394) e tão vital quanto o é hoje, tendo em vista que sempre o encontramos quando quer que estabeleçamos um vínculo entre a nossa psique e a psique de outra pessoa e o inconsciente for altamente constelado”. (Schwartz-Salant, 1988, p.165/166)

Tais momentos de vínculo e unidade sempre podem ser observados em comunidades primitivas, durante as danças rituais. No homem moderno tornam-se cada vez mais raros. Certamente podem acontecer na integração com a natureza, na vivência do espiritual, nas criações artísticas. Também no trabalho da análise, em que se trata de estabelecer o vínculo do eu consciente com a dimensão psíquica inconsciente, transpondo as percepções para a dimensão da existência física no mundo, no sentido da Conseqüência Ética que Jung cita como um dos passos da Imaginação Ativa.

Se não fosse por este último aspecto, quem melhor representaria esse vínculo seria o artista e o praticante de rituais religiosos, além, é claro, do poeta, que nos transmite os relatos mitológicos e recria os contos de fada. Nesses contextos se atualiza, em qualquer tempo e lugar, a ancestral predisposição herdada de produzir imagens simbólicas e, muitas vezes arcaicas, soterradas há muito tempo e, no entanto, sempre vivas e necessárias para o desenvolvimento da vida no caminho da individuação.

O artista vive esse processo sem necessariamente ter consciência da integração de seus conteúdos interiores. Ele “sofre” a tensão que antecede a criação de uma obra como algo inevitável, sem poder, como muitos de nós, se furtar a esse impulso que nasce do inconsciente. Para Jung o processo criativo do artista é algo vivo que se instala na psique humana e que, em muitos casos expressa um estado de autonomia, fora da hierarquia da consciência.

A biografia de grandes artistas deixa isso bastante claro: a urgência criativa freqüentemente é tão imperativa que atropela a humanidade e usa todo seu potencial a serviço da obra nascida como uma força da natureza que quer alcançar seu objetivo. O impulso criativo no artista é como se fosse uma árvore na terra que dela tira seu alimento para crescer (em Jung, (     ) par. XV).

Em nós, que não temos a vocação dos artistas, nem da profissão religiosa e também não somos poetas, a intensidade da expressão do imaginário interior é menor, mesmo porque nossa linguagem tomou outros rumos no correr de nosso desenvolvimento. Em épocas antigas, há milhares de anos, a linguagem corrente entre nossos ancestrais era feita de imagens e projeções sobre os fenômenos da natureza exterior. As pinturas rupestres, os rituais religiosos, os mitos de todos os tempos revelam a fantasia criadora dos homens e a importância que essa função simbólica tinha para eles. O homem de nossos dias, para alcançar a cura, o restabelecimento da harmonia interior, parece ter a necessidade de voltar a essa linguagem que permite a manifestação em cor, forma e movimento das emoções, dos sentimentos, da comoção em relação à vida.

Citando Verena Kast (1997, págs.23-24 e 37): “Simbolizar significa descobrir o sentido oculto na situação concreta… Projetamos nosso inconsciente sobre a realidade de superfície. No entanto, não podemos projetar um tema qualquer, mas apenas temas – no tocante ao símbolo – que tenham conexão interna com nossa existência…”.

Jolande Jacobi, que trabalhou longos anos como analista utilizando-se de recursos expressivos, afirma que nossa época poderia representar o fim de um ciclo em que a consciência individual lentamente se desprendeu do cosmos externo, tantas vezes representado nos relatos mitológicos na forma de deuses e heróis, e, também da convivência coletiva e inconsciente, formando uma personalidade cada vez mais individual. Agora seria o momento de superar os limites desta existência pessoal e voltar às raízes do inconsciente coletivo, no cosmos interior que aparece nas imagens pintadas e desenhadas, podendo, então, voltar à experiência da unidade integrada na consciência. Sabemos que durante um processo analítico, em que passamos pelas fases de confronto com os mundos exteriores e interiores, o sentido de vida de cada um de nós se revela nessa integração consciente.

Barbara Hannah (1985), que trabalhou com Jung usando o método da Imaginação Ativa, nos avisa de que não se trata de evocar o antigo pensamento mágico, de utilizar o conhecimento do inconsciente para influenciar nossa vida pessoal e a de outras pessoas em nosso próprio benefício. O modo legítimo de usar este método é pesquisar honestamente o desconhecido para alcançarmos nossa inteireza e a verdade de nosso ser.

A busca da união da dimensão interior e exterior no indivíduo pode ter como um resultado a espontaneidade total e o domínio completo da forma: na pintura Zen surge o momento em que cada traço é exato. O impulso criativo, vivenciado como luz flamejante, vindo do centro, realiza essa integração. Esta é uma das possibilidades de obter uma experiência interior através do movimento físico. Na nossa cultura, ela é privilégio de poucos. A outra possibilidade é a construção lenta e consciente de uma concentração que detecta cada alteração, por mínima que seja, nos movimentos exteriores e que aprende a relacioná-la com a sintonização interior, tornando reais os impulsos advindos das dimensões do nosso inconsciente para a forma exterior do nosso corpo.

Porém, o campo de intensidade criado durante o processo de individuação, e que subentende um trabalho psíquico de integração entre as dimensões pessoal e coletiva, entre a consciência e o inconsciente, entre o físico e o psíquico encontra-se despolarizado e demanda a busca urgente de uma transformação individual para que haja a transformação cultural e social necessária. É nesse dilema do homem atual que se insere a contribuição do legado de Jung para a cultura em suas mais variadas expressões e na complexidade de seus significados.

 

 

 

 

Referências

Arendt, H. (1992). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva

Benjamin, W. (1993). Sobre o conceito de história em Magia e técnica, arte e política.São Paulo: Brasiliense.

Cambray, J. (2009) Synchronicity Nature and Psyche in an interconnected Universe. Texas:A&MUniversity Press

Hannah, Barbara (1985).Begegnungen mit der Seele. Kösel Verlag, Munique

Freitas, M. G. (1991). Taipas e toupeiras. Porto Alegre: Fonte Phi

Jung, C. G. (2000). Os Arquétipos do Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes

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——— —-(1981). Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes

————–(1981). O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes

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Kast, Verena (1997) A Dinâmica dos Símbolos. São Paulo: Loyola

Mindell, Arnold (1989) O Corpo Onírico. São Paulo: Summus editorial

Schwartz-Salant, Nathan. (1988) Narcisismo e Transformação de Caráter.São Paulo: Cultrix